04/11/2023 às 11h15min - Atualizada em 04/11/2023 às 11h15min

Ameaça, agressão e medo: um relato de violência doméstica

O Sentinela traz a história de uma mulher que viveu na pele a violência doméstica. Maria conta como foi viver com seu agressor e como a união com sua família de origem a tirou dessa situação

Redação
Não é normal ser oprimida, humilhada ou apanhar do parceiro, não se cale, busque ajuda. (Foto: Divulgação)
“No começo é um príncipe montado em um cavalo branco, depois o príncipe vira um rato” afirma Maria, nome fictício, da entrevistada do Sentinela, que traz nesta edição a história de uma mulher que viveu na pele a violência doméstica e conseguiu denunciar seu agressor.
A violência doméstica pode se apresentar de diferentes formas, e todas configuram violação dos direitos humanos. De acordo com a Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, a violência doméstica e familiar pode ser caracterizada em física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
 

Maria

Maria era uma mulher independente, tinha sua casa, sua empresa e seus filhos. “Não buscava um relacionamento, mas ele era um príncipe montado em um cavalo branco. Acabei me mudando para outra cidade, e com o tempo, abandonando minha área profissional, mudando de vida para estar junto dele”, conta.
A família passou a morar no interior, foi quando violências sutis começaram a aparecer. “Ele me manipulava e aos poucos fui me isolando. Chegou a um ponto que eu não visitava mais meus pais para evitar brigas. Hoje vejo que não eram brigas, para brigar são necessárias duas pessoas, eu não tinha voz então eu não brigava, mas ouvia muito”. O isolamento social é típico dos relacionamentos abusivos, você vai perdendo o contato com familiares e amigos, e quando percebe está sozinha.
Além do isolamento social há outras violências que vão sendo impostas de forma muito sutil, pequenas coisas que colocam a mulher em uma posição de inferioridade. A violência doméstica não começa com uma surra, começa com uma piadinha sem graça que humilha a mulher. Através do ciúme mascarado de amor, onde o agressor, para te ‘cuidar’ censura o que você veste, a sua maquiagem. “A pessoa te manipula de tal forma que você acha que está errada. Quando vai sair, por exemplo, a pessoa fala ‘Ah você vai assim mesmo?’. A gente pensa que está tudo bem, a gente pode trocar de roupa. São gotinhas que minam o seu emocional e a sua autoestima, mas aos poucos o copo enche. Quando o seu emocional está destruído, aí começam os empurrões”.
Aos poucos o agressor passou a ser grosso, perder a paciência com facilidade e o diálogo ficou quase inexistente. Essa falta de paciência começou a ser exposta através da violência física, primeiro com os filhos, depois com Maria. “Ao ver o que estava acontecendo eu tive forças para interferir, não permiti que ele continuasse a ser violento com meus filhos. Quando interferi ele começou a ser mais agressivo comigo”.
Ainda assim, essas agressões com Maria eram feitas de forma velada, de forma que ela pensasse que a culpa era dela. “Eu estava constantemente roxa, quem me visse dizia que ele me batia, mas na verdade ele esbarrava em mim, me empurrava e eu batia nas coisas. Era algo que ele usava contra mim, dizendo que eu era muito descuidada, me fazendo acreditar que a culpa era minha”. Esses empurrões, por mais que não aparentassem, também categorizam como violência física.
Vale lembrar que o agressor não tem uma cara, ele é o cidadão comum, é o empresário, o lojista, o agricultor, o religioso. Para quem não está dentro do relacionamento ele pode aparentar ser a melhor pessoa do mundo, se mostrar parceiro, companheiro, sempre disposto a ajudar.
“Me sentia insegura, com medo e tinha vergonha. A gente realmente acha que a culpa é nossa, que estamos erradas. Eles [agressores] nos fazem pensar assim. Tinha medo e vergonha do que a sociedade ia pensar. Poxa né, estou em um relacionamento assim. Se coloca no meu lugar, onde todos que viam de fora dizem e pensam que eu vivia algo perfeito, algo maravilhoso e depois ter que dizer que eu sofria violência. Essas pessoas não vão acreditar em mim. Justamente por isso busquei ajuda apenas quando consegui provas dessa violência que sofria em casa”.

O medo

O medo é um dos fatores que pode fazer a mulher permanecer em um relacionamento abusivo. Medo do que pode acontecer com os filhos e familiares após a separação, já que a maioria desses relacionamentos são regados de ameaças: “Vou tirar os filhos de você”, “Vou te matar”, “Vou matar os seus pais”.
“Ele vivia me ameaçando, usando meus filhos pra isso. Eles são a minha vida, faço tudo por eles e ele usava isso contra mim. Chegou a um ponto onde meu medo, pavor e estresse eram constantes, da hora de acordar até a hora de dormir. Nada estava bom, ele implicava com tudo. Eu sempre tentando fazer mais, fazer melhor, achando que eu era o problema”, relata Maria.
Outra ameaça comum é o agressor dizer que a vítima vai ficar sem nada. “Também não é assim, quando você casa você tem o direito constituído, mas nós ficamos tão fragilizadas que acreditamos em tudo que eles falam”.
O isolamento, que foi vivido por Maria, é outro fator. Muitas vezes essa mulher se afastou tanto de sua família e amigos que não tem uma rede de apoio, ficando completamente sozinha, com vergonha de buscar ajuda por medo do que a família/sociedade pode pensar. Vale pontuar aqui que, ao passar por uma situação assim, qualquer pessoa de confiança pode fazer parte dessa rede de apoio, um vizinho, um amigo, um familiar, um serviço público de saúde ou social.
“Meu caso é diferente da maioria das mulheres. Minha família é muito unida. Meus pais perceberam o que estava acontecendo comigo e apenas não denunciaram porque tinham medo do que ele faria comigo e com meus filhos. Eu não pedi ajuda, por medo do que ele podia fazer com os meus filhos. Ele sempre dizia que ia tirar os meus filhos de mim. Eu sou uma pessoa esclarecida, sei que não é fácil ‘tirar os filhos de mim’, não é assim. Mas se ele matasse? Por minha família ser muito unida, quando pedi ajuda tive o apoio deles. Essa é uma coisa que gostaria de plantar no coração de cada família, a união. A família é pra isso. Se você perceber mudanças de comportamento na pessoa, desconfie”, alerta Maria.
Há ainda o apego emocional, já que o relacionamento não é feito apenas de momentos ruins, os momentos bons existem. “É uma questão muito cultural. A cultura machista passa de geração em geração, então nossas meninas crescem achando que é normal o pai bater na mãe, então está tudo bem se ela apanhar do marido. A religiosidade é outro fator que influencia. A gente acha que casamento é pra sempre, que é assim que deve ser, que devemos permanecer e tentar consertar o que está errado. Nos casos de violência isso se intensifica, tentamos consertar muito mais, porque o começo foi bom e acreditamos que pode voltar a ser bom. O meu relacionamento teve momentos bons no início e eu acreditava que podia voltar a ser daquele jeito. Mas não vai, hoje vejo isso claramente”, afirma.
É comum o agressor dizer: “Eu sou o único que te aguenta”, “Você nunca vai conseguir arrumar outra pessoa”. Esse tipo de pressão psicológica também é comum nos relacionamentos abusivos.
Muitas vezes as mulheres não têm nenhuma capacitação, só sabem cuidar de uma casa, dependem financeiramente do agressor e é mais difícil sair de uma situação de violência.  Quando há filhos pequenos há outro agravante, onde a mulher pensa: “Como vou sustentar meus filhos?”.
Outra situação que pode impedir a mulher de buscar ajuda é a falta de capacitação dos profissionais, sejam policiais ou profissionais da saúde, para prestarem o acolhimento da vítima. Isso se intensifica nos pequenos municípios onde não há Delegacia da Mulher.
 

O ciclo da violência doméstica

Existe o chamado ciclo da violência doméstica. A fase um é chamada de aumento da tensão, onde o agressor mostra-se tenso e irritado por coisas insignificantes, chegando a ter acessos de raiva, humilhando a vítima, fazendo ameaças e destruindo objetos. Na fase dois vem o ato de violência, à explosão do agressor em forma de violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Na fase três, também conhecida como “lua de mel”, o agressor se arrepende, se torna amável para conseguir a reconciliação, dizendo que vai mudar. A mulher se apega a essa esperança e permanece no relacionamento, falando frases como: “Vou melhorar porque te amo”.
“Não acredite. Se ele amasse ele nunca iria machucar”, enfatiza Maria.
 

Buscar ajuda

“Pedir ajuda é algo complicado. Embora tivesse o apoio da minha família, como eu ia pedir ajuda se estava sob constante ameaça. Esse medo nos cega, faz perder o raciocínio, ficamos completamente alienadas pelo medo. O psicológico é a primeira coisa que eles destroem, quando você está completamente destruída psicologicamente é que a violência física começa. Quando eu comecei a perceber que algo estava errado, quando ele não conseguia mais me manipular as coisas pioraram muito”, descreve Maria.
Para ela, o primeiro passo foi decidir que não queria mais viver com medo. “‘Ah, mas eu gosto dele’. Mas a que preço? Gostar dele vale viver uma vida apanhando, vale o risco de perder a vida? Quando decidi que tinha que sair eu sabia que ia sair, só que ainda não sabia como. Nesse tempo fui me informando através da internet, vendo documentários, relatos de outras mulheres e tentando juntar alguma prova”.
Juntar provas é um passo importante, ainda mais se a mulher está na busca por uma medida protetiva ou pela prisão do agressor. Podem servir como provas, áudios, mensagens no WhatsApp, fotos, vídeos. “Tente ter uma pessoa de confiança, mande essas provas para ela guardar para você. Alerte essa pessoa para não tocar no assunto perto do agressor, oriente essa pessoa para que ela não tente resolver a situação falando com o agressor, isso pode prejudicar muito a vítima”, informa Maria.
Existem ainda sinais que podem ser usados para denunciar a violência doméstica, como fazer uma marca vermelha na mão ou fazendo o Sinal de Ajuda: mostrando a palma de uma das mãos, feche o polegar (simulando fazer o número quatro) e, então, abaixe todos os dedos, ficando de punho fechado por alguns segundos. “Temos os serviços de saúde, as Secretarias de Assistência Social, podemos buscar ajuda nesses lugares”, acrescenta Maria.
 

Para quem ligar

  • Se você estiver em perigo imediato ligue 190 - Polícia Militar;
  • Para fazer denúncias anônimas, obter orientações para vítimas de violência e informações sobre leis e campanhas ligue 180 – Central de Atendimento da Mulher;
  • Para fazer denúncias de forma anônima ligue 181 – Disque Denúncia
  • 197 – Polícia Civil;
  • 55 48 98844-0011 – WhatsApp e Telegram da Polícia Civil de Santa Catarina;
  • Acesse pelo site: https://delegaciavirtual.sc.gov.br/ e faça um boletim de ocorrência on-line.
 

Um recomeço

Ao sair de uma situação de violência doméstica a mulher terá que recomeçar, mais do que nunca ela precisará de uma rede de apoio disposta a ajudar. Onde vai morar? Onde vai trabalhar? Com quem vai deixar os filhos para poder trabalhar? São coisas que passam pela nossa cabeça. Por isso é preciso orientar sua rede de apoio, deixá-la ciente de tudo que pode precisar.
“Se você conseguiu sair desse relacionamento, corte relações completamente, elimine as chances de ele tentar voltar e te manipular novamente. Não veja o que a pessoa posta nas redes sociais, não veja ou responda mensagens. Isso pode mexer com o nosso emocional. Como alguém que viveu isso acredito que não há outro remédio a não ser o corte do laço”, enfatiza Maria.
Ela finaliza dizendo que não é normal ser oprimida, humilhada ou apanhar do parceiro. “Todas temos direito à liberdade”.


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