09/03/2024 às 10h00min - Atualizada em 09/03/2024 às 10h00min

Desmistificando o Autismo

Emelly Delevatti é mãe de Helena, uma menina autista, ela abre seu coração para discutir os desafios enfrentados, as nuances da rotina familiar e as complexidades da inclusão

Redação
Hoje Helena está com 7 anos, conforme Emelly, o objetivo é torná-la ainda mais independente. (Foto: Divulgação)
Na busca por compreender e compartilhar experiências sobre o autismo, o Sentinela traz a história de Emelly Delevatti, uma mãe dedicada, cuja jornada é marcada pela descoberta do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em sua filha, Helena, de 7 anos. Nesta entrevista ela abre seu coração para discutir os desafios enfrentados, as nuances da rotina familiar e as complexidades da inclusão na vida de sua filha e na sociedade como um todo.
Emelly é casada com Antônio Carlos Jung, após 10 anos de relacionamento eles resolveram ter um filho. Descobrir a gravidez foi motivo de muita alegria para o casal, que completa agora, 19 anos juntos. Helena foi muito aguardada. Após uma gestação tranquila, Emelly teve uma complicação no parto, Helena nasceu em quatro de dezembro com pouco mais de 40 semanas, em estado de sofrimento fetal. Felizmente, a complicação no parto não trouxe consequências negativas para Helena. Hoje, Emelly e Carlos também são pais da Gabrieli, de um ano e três meses.
Justamente por essa complicação no parto, a família sempre esteve atenta ao desenvolvimento de Helena. Até então estava tudo bem, Emelly começou a perceber alguns atrasos em Helena quando ela estava com cerca de um ano e três meses, ao compará-la com sua sobrinha, Eloá. Enquanto Eloá já falava algumas palavras e começou a engatinhar, Helena ainda não balbuciava, ela ainda demorou a engatinhar e a caminhar.
Na creche, Helena não mantinha contato visual e não atendia quando era chamada pelo nome, a impressão era que ela não ouvia. A suspeita foi que ela tivesse algum problema de audição, após um exame, foi constatado que a audição de Helena era perfeita. Além disso, ela não ficava em aglomerados de pessoas, preferia brincar sozinha e não interagia muito com outras crianças. Emelly e Carlos desconfiavam que esses atrasos no desenvolvimento de Helena eram relacionados a complicações na hora do parto.
Simultaneamente a isso, a família realizou uma viagem e se hospedou na casa da prima de Emelly, prima essa, que é professora de Atendimento Educacional Especializado (AEE).  A professora cuidava de um aluno autista e, conhecendo esse aluno, Emelly percebeu em seu comportamento semelhanças com a Helena. Emelly, que nunca tinha ouvido falar em autismo, voltou de viagem com uma pulga atrás da orelha, foi quando levou a filha para fazer uma avaliação da Apae Pequeno Guinter.
Após a avaliação foram constatados atrasos na fala e no desenvolvimento motor, então Helena, com um ano e meio, foi incluída nas turmas de estimulação e passou a ser atendida pela equipe do SUS. Com um ano e oito meses Helena teve sua primeira consulta com um neurologista, onde fez dois testes, os resultados foram médio risco para autismo e alto risco para autismo. Como Helena já estava recebendo os atendimentos necessários, o neurologista preferiu acompanhá-la por mais tempo, pois era cedo para fechar o diagnóstico. Atualmente os médicos preferem fechar o diagnóstico o quanto antes, para já fazer uma intervenção.
 
Qual foi a reação de vocês neste primeiro momento?
Já pensávamos que podia ser autismo, mas a gente sempre tem esperanças de não ser, então foi um choque. Pensei: “Meu Deus, o que eu faço? será que ela vai ter uma vida normal?”.
Nesse início, as dificuldades que tínhamos com a Helena eram em relação a alimentação e o sono. Ela não dormia bem e não comia. Não sabíamos o porquê da dificuldade para comer. Através do neuro, descobrimos que ela não comia porque misturamos a comida. Os autistas podem ser seletivos. Quando passamos a separar os alimentos ela começou a comer super bem. Foi aí que vimos que não era coisa de outro mundo, era apenas questão de fazer adaptações.
 
Como vocês lidavam com essas particularidades que a Helena apresentava?
Quando você descobre a primeira coisa é pesquisar. Seguia autistas, médicos, lia livros. Buscava formas de saber lidar, porque a dificuldade maior é a gente aprender a lidar com eles, entendê-los. Se no livro dizia para fazer tal coisa eu testava e muitas vezes não funcionava, pois cada autista é diferente, é único. Então começamos a olhar mais para a Helena, percebê-la e usar da criatividade para manobrar situações que apareciam. Sempre digo que o melhor estímulo para ser criativo é ter um filho autista.
As coisas estavam bem, quando a Helena estava com dois anos e cinco meses, ela começou a falar e em poucas semanas já falava perfeitamente, frases e palavras complexas. Chamava a atenção porque ela gostava muito de inglês, vídeos, desenhos e jogos em inglês. Ela começou a falar as palavras em inglês, ela sabia falar inglês.
Nisso veio a pandemia e a Helena, que estava com dois anos e oito meses, passou a ter surtos onde se auto agredia, chorava muito e gritava sem parar por horas. Foi outro susto. Voltamos a entrar em contato com o neuro, mas nessa época os atendimentos eram on-line.
 
Como vocês contornaram essa situação?
Não poderíamos fechar o diagnóstico para o autismo on-line. Mas o médico pediu para tratarmos como um autismo de grau leve, porque ela tem muitas facilidades em algumas coisas.
Por essas crises, o neuro receitou medicação. Com mais ou menos três anos ela começou a tomar risperidona. Esse é o medicamento que ela toma até hoje, se adaptou super bem. Ela começou tomando uma dosagem bem baixa e hoje, para a idade dela, toma uma dosagem baixa.
 
Vocês tiveram receio em relação à medicação?
Sim, pensava: “Nossa, ela tem três aninhos e vai começar a tomar um antipsicótico”. Novamente surgiram muitas preocupações, certo preconceito com a medicação e medo, mas o médico sempre dizia: “Você quer ver a sua filha bem ou quer que ela sofra? Então vamos encarar a medicação”. E a medicação trouxe uma qualidade de vida muito grande para a Helena.
 
Você citou o inglês, esse foi um hiperfoco, ela teve outros?
Sim, a Helena sempre teve hiper focos que duram em média três meses, o primeiro foi o inglês e depois as letras. Por conta disso, ela teve muita facilidade para aprender a ler e escrever, entrou na 1ª série assistindo filmes legendados.
Depois vieram os hiper focos em matemática, geografia, nas bandeiras dos países e também nas ruas da cidade. Teve hiperfoco no bairro Azaleia, então antes de levá-la para a escola tinha que passar no bairro.
O hiperfoco atual não é tão bom – os outros eram bons pois traziam algum aprendizado. A Helena nunca teve muito acesso às telas, sempre tentamos privar ao máximo, mas no ano passado ela se aproximou dos jogos, esse é o hiperfoco atual. Nossa sorte é que a Helena funciona muito bem com a rotina, se você colocar na rotina dela que ela vai jogar por uma hora, quando terminar essa hora, ela mesma solta o celular porque sabe que tem outra coisa para fazer.
 
Na contramão das facilidades dela, quais as dificuldades?
Ela tem dificuldade motora, então ela ainda não consegue andar de bicicleta, por exemplo. Com a coordenação fina também há dificuldade, então a letra e os desenhos muitas vezes a gente não conseguia identificar. Mas ela está conseguindo, demora um pouquinho, mas consegue.
 
Qual foi o papel da Apae no desenvolvimento da Helena?
O papel da Apae é muito importante, porque foram os profissionais que, além de atenderem ela, nos direcionaram. A Helena sempre teve intervenções com psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, entre outros. Todos são muito importantes, mas pra mim, o que ajudou muito foi a TO.
A profissional que estava na Apae na época abriu muito meu mundo para o autismo, até ela não chegar em nossas vidas estávamos com aquele receio do que podíamos ou não fazer. Até que ponto corrigir, até que ponto é birra ou é uma crise. Então o terapeuta ocupacional clareou isso.
 
Como é o processo de aprendizagem da Helena?
Ela é muito visual, então colocamos um quadro de rotina na casa. Nesse quadro imprimi fotos realistas que guiam a rotina dela. Se à tarde ela for na casa da vó, vai ter uma foto da vó no quadro, então ela se prepara para o dia. Ela é muito de rotina. Tudo que ela sabe que vai acontecer ela encara com naturalidade. Se acontecem imprevistos ela fica agitada. Então tentamos ao máximo manter o que a gente fala.
 Conquistamos a independência dela para tomar banho sozinha através de uma história em quadrinhos colada no banheiro. Para escovar os dentes, se vestir, temos grudados na parede toda a sequência de como fazer. Tudo ela conquistou olhando.
 
Como foi a adaptação à escola?
Ela entrou no ensino fundamental em 2023 e foi muito desafiador. As crianças estavam aprendendo a ler e escrever, ela já sabia essa parte, então se frustrava muito. 
Foi um baque para gente e para os professores. Ela teve muitas crises. Ocorreu uma mudança de escola, muitas crianças, barulho, muitos cheiros – a Helena tem hipersensibilidade a cheiro, então qualquer cheiro que para gente é um pouco mais forte, para ela é horrível, ela faz ânsia, chega a vomitar. A Helena sentiu um desconforto muito grande, então não aceitava fazer as atividades na sala.
 
Como foi a volta às aulas agora em 2024?
Para o primeiro dia de aula deste ano ela estava bem empolgada. Acreditamos que vai ser melhor.
Tem a questão da rotina. No ano passado os professores dela trocaram três vezes e isso foi péssimo. Eu como mãe ficava triste e a direção também, porque eles percebiam que ela não tinha um rendimento maior. A nossa tranquilidade é que ela já sabe muitas coisas, mas ela poderia ter aprendido mais.
Este ano tem um professor novo, esperamos que ele fique até o final, porque percebemos a diferença quando tem um professor que fica e pega o jeito do aluno. 
 
Como é a inclusão na escola?
Ainda é pouco divulgado para a sociedade o que é e o que não é o autismo. A inclusão é algo muito superficial, que não depende apenas da escola, mas também do que os pais ensinam em casa.
Em todas as salas, não apenas nas que tem uma criança autista, mas com qualquer comorbidade, seria interessante um trabalho sobre. Para que as crianças cheguem em casa, contem que eles têm uma colega autista e expliquem o que é isso. Fazer um trabalho onde os filhos trabalhem junto com os pais e os pais possam orientar suas crianças.
Vejo pela própria Helena, ela pergunta: “Mãe, porque fulana não caminha?”. A Helena sabe que é autista, mas pergunta porque ela é autista e fulano é autista, mas ele não fala. Aí cabe a gente explicar de forma que ela entenda, que cada autista é único e que cada um tem suas facilidades e dificuldades, da mesma forma que ela tem as dificuldades dela, ela tem que respeitar a dificuldade do outro.
 
Os profissionais da educação estão preparados para atender crianças autistas?
No geral, a gente vê poucos profissionais especializados em educação especial. É uma porta muito grande que está aberta, porque muitas crianças estão vindo com TEA. Está aumentando cada vez mais, em 2022 para cada 44 crianças uma era autista, em 2023 a proporção já estava em 36 para 1.
A demanda está aumentando e as pessoas vão ter que se profissionalizar para conseguir atender essas crianças, para não haver um colapso na educação. Para a Helena, por exemplo, a escola deveria ter um AEE, onde um profissional aprimora suas facilidades e ajuda com as dificuldades, no Claudino [Escola Estadual Claudino Crestani] tem, mas no Libório [Núcleo de Ensino Fundamental Prefeito Libório Romildo Kuhn] não. A Helena faz esse atendimento na Apae.
Há uma dificuldade de contratar TO, por exemplo, porque a faculdade fica longe, não temos esse curso aqui perto, então quase não encontramos Terapeutas Ocupacionais, eles vem de longe e acabam voltando para suas origens para ficar próximo da família.
Com o aumento da demanda, acredito que toda escola precisaria ter uma pessoa que preste apoio, porque facilitaria até mesmo para os professores, que também têm que buscar informação. Com o aumento da demanda a sociedade começa a se moldar um pouco mais, no ano passado enfrentamos desafios, este ano percebemos que a própria escola já buscou alternativas diferentes para suprir certas dificuldades que tivemos.
 
Quais os objetivos em relação a Helena neste ano?
Deixá-la mais independente, preparar ela para realizar as atividades diárias. No ano passado começamos a colocar ela no ônibus para ir e voltar da escola. Deu super certo e para nós foi uma conquista muito grande. A Helena tinha alguns medos que este ano conseguimos superar. Para 2024 o projeto é conquistar novas autonomias. Ela terá as tarefas dela, vamos colocar essas tarefas no mural e ela terá que seguir todos os dias.
Cada autista tem seus desafios em cada faixa etária, percebemos quando a pessoa está pronta para adquirir algo mais complexo.
 
Qual é o dever dos pais, seja de uma criança autista ou não autista?
Nós como pais, queremos superproteger os filhos, temos medo do que o mundo fará com eles, mas o que cabe a nós, é ensiná-los a se defender, pois se chegarmos a faltar, o que vai ser dessas crianças?
Na primeira reunião de pais que participei da Apae, a psicóloga passou um vídeo sobre os filmes Procurando Dori e Procurando Nemo, aquilo ficou muito forte na minha cabeça, é um ótimo filme para falarmos sobre inclusão e sobre essa questão de preparar os filhos para o mundo.
Antes desta reunião nunca tinha visto o filme com esse olhar. A Dori tem um problema de memória, um problema intelectual. O Nemo tem um problema numa nadadeira, um problema físico. Não é porque a Dori tem esse problema de memória que ela não pode alcançar seus objetivos, porque seus pais sempre ensinaram que, por mais que as coisas estivessem feias, ela deveria continuar a nadar, eles a prepararam pro mundo. Já Nemo, era superprotegido pelo pai, por ter essa dificuldade física e por ter perdido a mãe. Quando o Nemo perdeu o pai ele não sabia o que fazer. É um desenho, mas que nos traz inúmeros ensinamentos.
Não podemos dizer: “Ah coitadinho”, jamais falar assim da criança, temos que prepará-los para a vida e para o mundo.
 
O que você tem a dizer para as famílias?
Todo pai quando descobrir terá uma reação ruim, quando o filho nasce a gente já imagina o futuro dele, não existe pai que não faça isso. Então é complicado nos primeiros anos, até que você aprende a lidar com a criança. Mas tudo passa, sempre tinha na minha cabeça que ia passar e ia melhorar. Tudo passou e melhorou.
Descobriu que tem, não é o fim do mundo, busca o que está a seu alcance, leve fazer as terapias e busque se cuidar, se precisar tomar remédio, tome. Eu tomei medicamentos sim, precisei de antidepressivos. Acho que os pais não precisam dar conta de tudo, a gente nunca vai precisar estar bem o tempo todo. Tem horas que você precisa chorar, tem coisas que vão acontecer que você precisa por pra fora. Se a sua carga estiver pesada, busque ajuda.
Penso que o pai tem que estar bem para cuidar do filho. Eu precisei, não tenho vergonha nenhuma, fui em psicologia, tomei medicamento e tomo até hoje, me sinto bem é preciso estar bem para a Helena estar bem. Nem tudo ocorre como a gente quer e temos que buscar meios e alternativas, não podemos nos vitimizar, temos que usar a criatividade e buscar meios.
 
Como mãe, você tem algo a dizer especificamente aos pais?
O pai tem menos aceitação que a mãe, geralmente. A mãe naturalmente fica mais com a criança e ela percebe mais os traços, as dificuldades. Para o homem é mais difícil a aceitação e lá em casa não foi diferente, mas somos parceiros e o Carlinhos me ajuda muito. O que posso falar para os pais é: escutem as mães, elas sabem. É algo que o casal tem que abraçar junto para não sobrecarregar a mãe.


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