A cena é familiar: uma criança, debruçada sobre a mesa, manuseando um lápis de cor já gasto, riscando as primeiras letras do próprio nome em uma folha de papel. O tempo parece desacelerar enquanto ela experimenta, erra e aprende — um ritual silencioso, mas profundamente humano, que se repete há gerações. Essa cena, singela e carregada de significado, carrega consigo um questionamento contemporâneo: será que a alfabetização mediada pelo papel e pelo tato ainda tem espaço em uma sociedade hipertecnológica?
O papel que transforma
Diante da avalanche tecnológica que invadiu as salas de aula no século XXI, muitos se perguntam qual o verdadeiro impacto da transição do livro físico para a tela. O filósofo Leandro Karnal, voz conhecida quando se trata de educação e cultura, faz um alerta: “A leitura que transforma é no papel.” Segundo Karnal, o processo de alfabetização vai muito além do decifrar de códigos linguísticos; é, antes de tudo, uma conquista humana que respeita o tempo do aprendizado, a coordenação motora fina, o contato sensorial com o mundo.
É no papel, argumenta Karnal, que a criança aprende a desacelerar o olhar, a saborear cada palavra, a construir sentidos profundos. Folhear as páginas de um livro, sentir a textura do papel, sublinhar passagens, voltar algumas linhas para reler: esses gestos aparentemente banais ajudam a solidificar a aprendizagem e tornam a experiência da leitura mais significativa.
O respeito às capacidades humanas
Alfabetizar não é apenas ensinar a ler e escrever: é antes de tudo respeitar o ritmo, a curiosidade e as habilidades de cada criança. O lápis, a borracha e o papel são instrumentos de mediação entre o pensamento e o registro, entre o mundo interno e o universo simbólico das palavras. Quando a criança desenha uma letra, apaga, reescreve, ela está, na verdade, negociando consigo mesma o significado do erro e do acerto — uma lição preciosa para a vida.
A leitura em papel exige concentração, atenção e paciência. Ao contrário do universo digital, em que somos constantemente bombardeados por estímulos, o livro físico convida ao mergulho profundo, à quietude e à reflexão. A leitura lenta, aquela em que o leitor se permite interpretar, questionar e até mesmo discordar do texto, é fundamental para desenvolver o senso crítico e a autonomia intelectual.
Livros, revistas e jornais: portais para a compreensão do mundo
O contato com diferentes suportes — livros, revistas, jornais — amplia o horizonte das crianças, proporcionando não apenas o domínio da linguagem, mas também o acesso a novos mundos, ideias e perspectivas. É por meio dessas leituras que se constrói a ponte entre o cotidiano e o imaginário, entre o local e o global, entre o passado e o presente.
Revistas despertam a curiosidade, misturando informação com imagens instigantes; jornais ensinam a distinguir fatos de opiniões, a compreender contextos, a se posicionar diante da pluralidade de vozes. Livros, por sua vez, são janelas para o infinito, abrigando histórias que ensinam a empatia, a resiliência e a esperança.
O exemplo finlandês: um alerta vindo do futuro
A Finlândia, frequentemente celebrada pelos altos índices de educação, protagonizou um experimento arrojado no início do milênio. No ano 2000, o país decidiu abolir o uso do papel nas salas de aula, apostando na alfabetização mediada por computadores e dispositivos digitais. Por duas décadas, crianças finlandesas aprenderam a ler e escrever com o auxílio de telas, teclados e programas interativos.
Mas os resultados práticos trouxeram inquietações. Em 2020, após inúmeros estudos e avaliações, o país reviu sua posição: proibiu o uso de celulares e computadores durante as nove séries do ensino fundamental, restituindo ao lápis, à borracha e ao papel o protagonismo no processo de alfabetização. O motivo? Pesquisas apontaram queda na capacidade de concentração, dificuldade de interpretação de textos e fragilidade na retenção do conteúdo escrito.
O caso finlandês serve como espelho para outras nações: o fascínio pela tecnologia não pode eclipsar a compreensão da natureza humana e de seus limites. Alfabetizar com respeito ao corpo, ao tempo e à singularidade de cada criança é apostar em uma aprendizagem sólida, capaz de resistir às modas passageiras e às promessas de soluções instantâneas.
O papel da leitura profunda
Vivemos tempos em que a velocidade da informação parece ser o valor máximo. Contudo, como lembra Karnal, “quem não lê devagar, não entende devagar — e quem não entende devagar, não entende profundamente.” A leitura apressada, fragmentada entre notificações e distrações, pode até gerar uma sensação de produtividade, mas, em geral, deixa lacunas na compreensão e empobrece o pensamento.
Ler lentamente é um exercício de humildade e de respeito à complexidade do mundo. Exige disciplina para resistir à tentação do “scroll” infinito, coragem para mergulhar em textos desafiadores, generosidade para aceitar que o entendimento pleno é fruto de esforço e dedicação. Ensinar as novas gerações a amar a leitura profunda é garantir que não se limitem a decifrar códigos, mas sejam capazes de interpretar, criticar e transformar a realidade.
Conclusão: alfabetizar para o futuro, respeitando o passado
A alfabetização das crianças é um compromisso coletivo, que envolve famílias, educadores e toda a sociedade. Ao privilegiar o papel, o lápis e a leitura atenta, não estamos negando a importância das tecnologias, mas sim reconhecendo que a verdadeira transformação se dá no tempo da infância, quando cada letra desenhada é um passo em direção à autonomia.
O exemplo da Finlândia e as reflexões de Leandro Karnal nos convidam a um equilíbrio: que o futuro seja digital, mas sem abrir mão do humano; que a educação use as ferramentas tecnológicas com sabedoria, mas sem esquecer o valor insubstituível do silêncio da leitura, do toque do papel e da profundidade de uma interpretação cuidadosa.
Porque, no final, alfabetizar é muito mais do que ensinar a ler — é formar leitores do mundo, capazes de compreender e transformar a própria história.