Uma decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) gerou polêmica: em um casamento regido pela separação obrigatória de bens, sem filhos, pais vivos ou testamento, a viúva herdou 100% do patrimônio do falecido. Os irmãos e sobrinhos ficaram de fora.
O julgamento da Apelação Cível nº 1010433-44.2024.8.26.0248 fundamentou-se no artigo 1.829, inciso III, do Código Civil, que prevê: “Na falta de descendentes e ascendentes, será chamado a suceder o cônjuge sobrevivente.”
A separação obrigatória de bens — prevista no art. 1.641 do Código Civil — regula a administração patrimonial durante o casamento, não o direito sucessório após a morte. Essa distinção é crucial. Enquanto vivos, os bens não se comunicam. Mas, falecendo um dos cônjuges, a lei entende que o sobrevivente é herdeiro legítimo prioritário na ausência de descendentes e ascendentes.
Por que a decisão é correta. Primeiro, porque preserva o núcleo familiar mais próximo. O cônjuge sobrevivente, que partilhou a vida, o afeto e muitas vezes o cuidado no final da vida, está mais próximo do falecido do que irmãos ou sobrinhos com vínculos eventualmente distantes.
Segundo, porque a lei não faz distinção entre regimes de bens na hora de definir a ordem de vocação hereditária. Alterar isso por interpretação judicial seria legislar — algo que cabe ao Congresso, não aos tribunais.
Terceiro, porque a decisão reafirma segurança jurídica: casais podem confiar que, na ausência de descendentes ou ascendentes, o cônjuge será protegido.
Alguns críticos afirmam que, no regime de separação obrigatória, a herança deveria ir a outros parentes, pois o patrimônio seria fruto exclusivo do falecido. Esse raciocínio ignora que o casamento, mesmo com separação de bens, é uma sociedade de vida e apoio mútuo. Contribuições não patrimoniais — como cuidados, renúncia a carreira para apoiar o outro, ou sustento emocional — não aparecem no extrato bancário, mas são igualmente valiosas.
Se alguém deseja que irmãos, sobrinhos ou outros herdem seus bens, a ferramenta correta é o testamento. Fora isso, a lei brasileira protege o cônjuge sobrevivente como herdeiro legítimo, e a decisão do TJSP simplesmente aplicou a regra.
Ao garantir 100% da herança à viúva, mesmo na separação obrigatória de bens, o TJSP não inovou: apenas cumpriu o que está no Código Civil. Mais que isso, reforçou a ideia de que o casamento, em qualquer regime, é também um vínculo de solidariedade, e que o cônjuge sobrevivente merece proteção integral na ausência de descendentes e ascendentes.
A polêmica é legítima, mas o direito, nesse caso, falou mais alto que a emoção. E falou bem.
Por: Juliane Silvestri Beltrame Especialista em Relações Familiares e escritora.