Desumanização da criança e a idealização do casamento
O Brasil é o quarto país no mundo em casamentos infantis, em números absolutos, segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Ficamos atrás apenas de Índia, Bangladesh e Nigéria. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o casamento infantil é a união formal ou informal em que pelo menos uma das partes tenha menos de 18 anos.
No Brasil, a união com menores de idade é permitida a partir dos 16 anos, desde que tenha autorização de pais, responsáveis ou de um juiz.
O casamento infantil no Brasil é motivado, sobretudo, por aspectos como a pobreza e a vulnerabilidade social – e não por fatores ritualísticos ou culturais, como ocorre em outros países africanos e asiáticos.
Em 2016, o número de casamentos ou uniões no Brasil foi de 1,09 milhão. Desse total, 137.973 incluíram pessoas com até 19 anos, sendo 28.379 meninos contra 109.594 meninas. Outros dados alarmantes revelam que 2,2 milhões de meninas brasileiras menores de 18 anos são casadas. O número representa 36% da população feminina nesta idade, segundo dados da organização Girls Not Brides (Meninas, não noivas, em tradução livre) apresentados em 2023.
A definição internacionalmente reconhecida de criança – estabelecida pela Convenção sobre os Direitos das crianças (CDC) um dos tratados mais universalmente endossados e amplamente ratificados da história – é “todo ser humano menor de 18 anos”. Esta também é a definição legal utilizada na maior parte do mundo.
No Brasil, a idade legal para o casamento é a da maioridade: 18 anos. No entanto, é permitido casar-se aos 16 anos — considerada a idade núbil — com o consentimento dos pais ou autorização judicial, assegurado e protegido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mesmo com a emancipação, sujeitando-se às medidas socioeducativas.
Uma boa evolução foi que em 12 de março de 2019, a Lei nº 13.811 alterou o artigo 1.520 do Código Civil brasileiro, proibindo o casamento de menores de 16 anos, sendo um ato nulo, podendo inclusive, ser considerado o ato sexual dos menores de 14 anos como estupro de vulnerável pelo Código Penal – art. 217-A, mesmo com o consentimento.
Destacamos ainda, que existe um Projeto de Lei nº 7.119/2017, na Câmara dos Deputados que visa conferir alteração no art. 1.520 do Código Civil, de modo a suprimir as exceções legais do Casamento de menores.
Pesquisas sugerem que meninos e meninas menores de 18 anos geralmente são jovens demais para transições sexuais, conjugais e reprodutivas. Portanto, é preciso dar visibilidade às consequências do casamento infantil, promovendo uma conscientização pública e sensibilizando toda a população.
Casar-se antes dos 18 anos também pode ter grandes impactos negativos em uma série de outros resultados para as meninas e seus filhos.
Embora a maioria das gravidezes na adolescência nos países em desenvolvimento ocorra entre meninas já casadas, em alguns lugares a gravidez na adolescência – ou mesmo a possibilidade de uma gravidez na adolescência – leva os pais a casar suas filhas para preservar a honra da família. Isso ocorre tanto em países ricos quanto pobres, onde as comunidades consideram a gravidez fora do casamento vergonhosa. Em alguns casos, as meninas podem até ser forçadas a se casar com estupradores para poupar suas famílias do estigma associado à gravidez fora do casamento.
No Brasil, segundo a instituição Banco Mundial, acontecem cerca de 554 mil casamentos entre meninas de 10 e 17 anos, o que corresponde 30% da evasão escolar feminina, o que acaba diminuindo sua capacidade profissional, levando a dependência econômica do parceiro, sofrendo violência sexual, física e patrimonial.
Diante desse cenário, podemos citar algumas consequências do casamento infantil, como: o casamento precoce reduz a probabilidade de conclusão do ensino médio, que em muitos países é aos 18 anos de idade; aumenta a incidência de gravidez precoce, onde o Brasil ocupa a sétima posição na América do Sul, segundo dados da UNFPA, aumentando o risco de vida e complicações no parto segundo a OMS; problemas de saúde mental; violência por parte dos parceiros; aumento do serviço doméstico. Além disso, considera-se que, com menos de 18 anos, não adquiriram a capacidade — nem a maturidade — para consentir livre e plenamente o casamento.
De acordo com dados levantados junto aos órgãos de proteção infantil do município de Campo Erê, no último mês teve 03 casos envolvendo menores, sendo 02 tentativas de casamento infantil e um estupro de vulnerável, fora os demais casos que não chegam ao conhecimento.
Portanto, cabe aos pais a maior responsabilidade e orientação aos adolescentes, assegurando uma vida digna e oportunidade de estudo e esporte. Até porque, conforme a célebre frase do filósofo ARTHUR SCHOPENHAUER, “Casar significa duplicar as suas obrigações e reduzir à metade dos seus direitos.”
O dever de cuidado dos genitores é uma obrigação legal prevista na Constituição Federal, no Código Civil e no ECA. Combater o silencio estatístico para promover uma conscientização de políticas públicas, acesso a informações acuradas sobre saúde sexual e reprodutiva, oportunidades para educação e desenvolvimento pessoal, e plataformas para participação e engajamento na vida comunitária e civil, são algumas estratégias que podem ser fomentadas na sociedade.
Afinal de contas, LUGAR DE CRIANÇA É NA ESCOLA e, conforme o art. 227 da Constituição Federal, deve estar em primeiro lugar.
Ela tinha 12 anos e engravidou. O que você queria? Que ela vivesse sem pai para seu filho? Não entender o casamento infantil como uma violação de direitos e como uma solução moral para uma grave situação, torna essas meninas invisíveis pela sociedade. Ninguém fala das consequências do casamento infantil, ninguém fala da meninice, ninguém fala do controle patriarcal, da violência de gênero. O acesso aos direitos é a solução e não a máscara patriarcal de uma legislação retrógrada.
Ninguém deveria casar antes dos 18 anos. Essa é a solução. A sociedade vende o casamento romantizado e não prepara as meninas para o que realmente é o casamento. Reconhecer o desenvolvimento dos menores. A menstruação não é carta branca para o casamento e a opressão muitas vezes, vem no rosto de quem a gente ama.
Por: Juliane Silvestri Beltrame Especialista em Direito das Famílias e escritora.