Era uma vez um burro que andava descontente com a vida. Moído e cansado de tanto trabalho, decidiu mudar a sorte. Como não tinha direito à aposentadoria, pensou em tornar-se cavalo. Esse animal, imaginava ele, é um aposentado desde o dia do nascimento. Assim, iniciou os preparativos para a importante metamorfose. A primeira providência foi marcar uma conversa com um cavalo. Após confirmada a audiência, lá se apresentou o burro.
- Amigo, irmão, eu... – disse o burro.
- Não sou seu amigo – cortou o cavalo – e muito menos seu irmão. Antes de mais nada, coloque-se em seu devido lugar. E por favor apresse-se, que tenho outros compromissos. Não posso perder meu tempo à toa.
- Bem, é que...que eu ... queria...uma... informação, mas... – Mas o que? Volveu o cavalo, adivinhando-lhe o pensamento.
- Quem pretende subir escada, deve primeiro arrumar bengala. Até logo, e não me apareça mais nesse escritório. Aliás, você devia era estar trabalhando! Decepcionado, o burro voltou para casa. A ideia, contudo, nem por um momento lhe saía da cabeça.
Não podia desanimar, precisava subir na vida. Mas, de que jeito? Matutou, matutou até que achou melhor mudar a estratégia. Transformou-se em um burro exemplar. Pontual, trabalhador, ordeiro. Redobrou esforços, assumiu novos encargos, aperfeiçoou o serviço. Não perdia oportunidade de fazer hora extra. Nas conferências e banquetes dos cavalos, passou a ser citado como o trabalhador modelo!
A recompensa não se fez esperar: ganhou o concurso de "burro-padrão" e recebeu, das mãos do Sr. Puro Sangue, uma vistosa medalha de ouro. Entretanto, o burro permanecia insatisfeito. Sentia-se estufado, é bem verdade, superior aos demais burros. Mas tudo não passava de vento, uma vez que a carga fora duplicada e a fadiga ameaçava prostrá-lo de vez. Devia encontrar outro caminho. Dito e feito.
Tornou-se puxa-saco. Pôs-se a bajular tudo que era cavalo que lhe aparecia pela frente. Preparava-lhes o pasto, servia aperitivo, cafezinho e sobremesa e vivia desmanchando-se em sorrisos e mesuras, transformando-se em pouco tempo, numa espécie de sombra do cavalo- chefe. Ainda desta vez, porém, não teve sucesso. Percebendo a submissão, os cavalos sobre carregaram-lhe o dia-a-dia com peso excessivo. E tinha que cumprir todas as tarefas com um eterno sorriso nas ventas, como um perfeito idiota.
Com essa "disponibilidade" sempre presente e imediata, a vida tornou-se lhe uma verdadeira escravidão. Mas não se deu por vencido. Havia de encontrar outro meio. E se tentasse imitar o cavalo? Não pensou duas vezes. Copiou-lhe o elegante relinchar, o caminhar garboso e alguns outros costumes. Como se, à força de imitação chegasse a ser semelhante a ele. Mas isso só fez piorar a situação. Pois, além de na realidade continuar levando vida de burro, ainda precisava dar voltas à cabeça, aparentando o que de fato não era. Por mais que buscasse uma identificação, não podia afastar de cima do lombo a carga que o oprimia cada vez mais. De resto, não suportava essa existência de falsidade que o forçava a usar uma permanente máscara.
Desiludido em todos esses esforços, achou por bem juntar-se aos de sua própria classe. Soube, um dia, de uma assembleia de burros e, embora sentindo-se um estranho, resolveu comparecer. Ouviu discursos inflamados, ergueu os punhos e a voz, agitou faixas e bandeiras...Meio constrangido, meio incrédulo, um pouco fascinado.
Mais do que as palavras, as cores e os gritos, uma coisa o impressionou profunda e vivamente: sentia-se mais do que um cavalo! Essa sensação nova, nascendo no mais íntimo do ser, devolvia-lhe as entranhas, tomando conta de toda a sua existência. Claro, todos ali eram burros. Porém, coletivamente, possuíam mais força, sabedoria e arte do que qualquer cavalo da mais alta e nobre linhagem. Viu-se desse modo, transformado num ser superior àqueles cujos passos procurava em desespero seguir. De uma vez por todas, aprendeu a lição.
Por Leonita de Souza
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